terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Os minutos atrás de mim

Final de ano, correria, falta de tempo e aquela angústia chamada "não-vai-dar-tempo" pega a todos.
Olho para trás e sempre dou de cara com eles: os minutos atrás de mim. Eles passaram, oras.
O dia 31 de dezembro aproxima cheio de promessas. Primeiro, um dia de expectativas, mas sem tanta correria com uma véspera de Natal. Não há os presentes. Depois, a véspera para o ano-novo (nunca sem se com ou sem hífen...) sugere algo leve, festivo, liberto. Entristeci-me ontem, com uma reportagem no caderno para adolescentes da Folha de S.Paulo. Era um grupo de meninos e meninas que odiavam as festas da passagem do ano, a maioria atribuindo a noite a uma série de encontros sem sentido e sentimentos de falsidade. Triste pelos sentimentos. E triste porque pensei: "nossa, se são tão amargos assim, como não notam que estas situações podemos ter todos os dias??"
Ainda não é véspera, mas eu já acalmo meu coração. Rumo a um 2009 verdadeiro. Seja nos sorrisos ou nas lágrimas motivadas pela prosa ou pela poesia.
Não importa. Quero é viver.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Pela janela de trás

Quando eu era criança, era proibido abrir a janela de trás dos poucos carros quatro portas que em que eu circulava. Era perigoso. Mas era uma chance deliciosa e então eu apenas sonhava com ela.
Adoro janela. Ver as pessoas nas ruas, imaginar seus destinos, suas histórias. Por isso sempre preferi ônibus a metrô. O metrô não me deixa ver histórias.
Agora existe um recurso. Os vidros de trás dos quatro portas abrem somente até uma determinada altura. É proibida a olhada de uma criança mais do que aquilo.
Mas esta semana vi uma resistente.
Ela tinha uns quatro anos e estava lá, diante de sua limitação de janela.
Mesmo à noite, mesmo perigoso, mesmo com a violência, mesmo com aquele vento gelado, ela estava lá, de ponta de nariz na janela.
O vento vinha forte, ela fechava os olhos. Mas só por milésimos de segundos. Suas piscadelas não podiam impedi-la de ver as histórias.
Os pais, nos bancos da frente, também tinha suas janelas abertas. Mas estavam mais envolvidos com suas próprias histórias.
A menina queria mais. E viu.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Olha o troco!

Ele estava ali, andando na mesma calçada, puxando as prateleira em frangalhos, exalando mau humor. Vi e era inacreditável. Uma viagem ao passado e uma comum mas sempre incrível constatação: há certas coisas que nunca mudam.
Todo começo de ano, a mesma coisa. Chegava o momento de ir ao bazar daquele grosseiro senhor de óculos de armação grossa, semblante de sofrimento, roupa antiga. Minha mãe só queria ir à livraria dele, que tinha pretensão de bazar.
- É mais barato, Cris. Além disso, sempre encontramos todos os livros lá.
E ela tinha toda a razão. Suportávamos aquele mal-humorado vendedor pelas vantagens. Mas nem por isso, relutava sempre à minha visita anual.
- Será que não posso ficar em casa desta vez?
Nunca podia. Parecia ensinamento. Deveria ser mesmo, um teste de resistência, controle. Quantas vezes na vida não temos que encarar o que não queremos?
Eu sempre ia.
E era a mesma coisa. Entrava naquele caos de infindáveis pilhas de livros. Eu sempre achava que ele não iria encontrar. E ele sempre encontrava o pedido. Existia uma ordem nele naquele caos. Impossível perceber como.
Após horas de busca, as inúteis tentativas dos clientes na ajuda e os berros constantes que ele remetia à filha, os livros estavam ali, todos na nova pilha, a pilha de livros da Cris.
Era o fim da tortura. Que sempre terminava com uma grosseria final. Não sei por que, eu e minha mãe nos perdíamos entre as publicações enquanto ele contabilizava nosso dinheiro.
Nós, à beira da saída daquele empoeirado local, a minutos de nos livrarmos da bagunça em forma de livros, ele gritava do caixa:
- Ei, olha o trooooco!
E não é que ele ainda está lá?

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

O que me darão em troca?

Semana passada, ouvi meu professor setenciar:
- O CD tem mais um ou dois anos de vida. Não vai passar disso...
Aquilo ressou em mim por dias. Ressoar. Como será esta ressonância agora?
Quando ouvi isso dos vinis, em troca me deram o CD, um formato tipo "pocket" do que eu tinha grande. Eu sei que jamais sentiria o impacto de uma capa tipo Sgt Peppers. Nem da felicidade-bônus de um quase pôster do U2 em Joshua Tree. Mas eu tinha ali outro tipo de arte, de idéia, de jeito de guardar.
O que tenho agora?
Todos com a mesma cara da Sony. Todos com a mesma cor prata espelhada. Todos escritor com a mesma caneta para CDs. Todos iguais.
E as junções?
David Bowie agora pode estar lado a lado, faixa a faixa com Chico Buarque. Living Colour em companhia de High School Musical.
Promíscuos tempos digitais.
Possibilidades incríveis. Chances de ter, ouvir, ver, assistir.
Temos um e outro.
Mas com qual cara?

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Tempo, tempo

Eles deram um nó no tempo.
Todos os antigos conceitos, preconceitos e pré-conceitos chegaram ao fim. Quando se encontraram, de fato, recomeçaram.
Renovaram idéias, sonhos. Trocaram de posições no tempo. Ele é mais novo e ela, mais velha. Mas vivem mudando de papéis. Juventude ou inexperiência? Experiência ou maturidade?
Eles brincam com os dias, guardam datas. Transformam os minutos, os sorrisos duram mais do que o comum.
Fazem o mesmo com cara de novo. Voltam nas lembranças para reapresentá-las um ao outro. Acham tudo diferente. Revêem-se. Vencem.
Divertem-se tanto com o tempo que comemoram aniversário no dia em que as pessoas lembram os finais dos finados.
E muitas vezes nem se dão conta que o tempo passa assim mesmo. Ou é o tempo que não está dando conta deles?

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Liberdade de sentires


Fiz o cadastro no Museu da Pessoa. A idéia era falar de mim. "Conte sua história" está lá no ícone.

Voltei para cá, o blogger.

Olhei minha foto de criança.

Pensei na minha infância.
Lembrei do 'estado de infância' que Paulo Netho e o seu Cara de Pavio, meu mais recente amigo que adora fazer um Balaio de Dois.
Quem sou eu? Quem fui? Posso contar minha história a qualquer um. Quero contá-la?
O orkut mexeu com a privacidade. Eu falo aqui, todo o mundo sabe lá, na mesma hora. Não consigo colocar fotos.


O youtube revolucionou. Posso voltar no tempo e rever o La Linea, que para minha infância era o "A Linha", o quadro no Globinho que eu mais amava. Vejo-o agora falando engraçado e em várias línguas.
Nunca fiz vídeos lá, mas vira-e-mexe coloco meu nome na busca. Vaidade ou medo?

O que eu fui não tem mais lugar hoje. Está nas lembranças.

Hoje
posso contar
minha história
d
o
jei
to que eu bem
enten
der.
Posso até nem ser eu.
Ser
artuo. Ao contrário.
Brincar com as palavras, ser meu próprio dicionário.
Quem é que vai saber de mim?
Eu mesma.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

De fita e tudo

Dormiam de mãos dadas, colecionavam lembranças.
"E quando eu abria a porta e você se agachava no chão da cozinha só para eu correr e te dar um abraço forte?"
"E quando você dançou na formatura a canção do Queen, o sapato Melissa, a blusa xadrez?"
"E quando você me ajudava nos mapas, apagava com a borracha sem deixar borrão, redescobrindo rios e afluentes?"
"E quando você sorriu pela primeira vez, no meu colo, parecendo agradecimento mas com cara mesmo de presente?"
"E quando você insistia em que eu acoplasse uma fita verde no cabelo quando na verdade eu queria mesmo era sair toda de preto?"
"E quando você me enchia de beijos e eu ficava toda molenga de tanto rir?"
"E quando você me deu a mão, para dormir a última noite juntas, para dizer que eu poderia já, sozinha, me defender do lobo, da floresta escura, dos cestos cheios de doces e da morte?"
E ela descobriu, aos 15, que podia tudo. Só bastava levar a fita verde com ela.

Uma inspiração em Fita Verde no Cabelo, de Guimarães Rosa.

sábado, 18 de outubro de 2008

A festa

- Quem vai cuidar da festa este ano é você - disse ela aos 82, cansada de liderança. 
Ele fez sinal de obediência, mesmo sabendo não haver tempo nem disposição para a tarefa. 
Pensou em como seria o tradicional encontro de família. 
Não mais a prima de falar alto, baixa estatura e humor colado à pele. Não mais a brincadeira com o marido, o orgulho do neto, as piadas guardadas para a grande ocasião. 
Não mais o irmão estilo bonachão, sentado perto da mesa repleta de delícias que ele, pela ameaçadora diabetes e os muitos quilos a mais, deveria mas não resistia. Não mais o riso de lado, a mão na boca, o olhar de um cansaço infinito, uma preguiça de viver aquela vida reservada a ele. 
O encontro era em nome do passado. As crianças pequenas, os irmãos se reencontrando em festa, os cunhados em eterna adaptação. Os avós eram vivos e distribuíam sua sabedorias, enquanto viam os filhos complicarem a simplicidade dos tempos de ontem, da vida pacata, dos poucos recursos, do sossego de quereres. 
Mas não era mais assim.
Os mortos faltavam sempre, a cada ano. 
Os mais novos tinham suas festas, seus namoros, suas vidas à parte.
Entre um grupo e outro, uma turma que se via pouco, que ignoravam preferências, escolhas, profissões. Ninguém sabia o último filme assistido, o jantar inesquecível, o aumento do salário, a briga com o melhor amigo, a dor no quadril. 
Não se conheciam mais. Mas se reencontrariam assim mesmo. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Trombadas

Felicidade é coisa esquisita. Ficamos atrás dela, feito loucos. Trabalhamos, estudamos. Beijamos, amamos. Conhecemos, vivemos. Treinamos para isso.
Quando ela chega, parece que todo o tal treinamento desaparece. Ficamos meio bobos. Nos tornamos inocentes, bem diferente da capacidade que possuíamos quando lutávamos para senti-la.
Nos desarmamos. Ficamos vulneráveis. A proteção adormece.
Mas à espreita, estão os outros. Sempre prontos para um deslize, uma distração.
Até que finalmente, atingem. Pego de surpresa, você cai. Não sabe mais reagir a rasteiras, parece.
E leva a trombada. Com o susto, você consegue desviar a direção para o lado, para não machucar tanto. Ameniza, mas bate assim mesmo.
O outro pára, quer ajudar. Não pergunta se machucou. Apenas diz que está ali e vai arcar com as conseqüências.
A batida não é forte, a gente reconhece. Mas dói porque é prova de que você esta distraído. Desatento. Disso você se transforma em frágil. Não acredita, parece maior do que foi.
Desanima, cai. Cai de decepção. A confiança acabou.
Mas passa. Ah, a vida e os 'mas'.
Passa e você olha o 'amassado' e se dá conta: 'vou superar'. É só funilaria mesmo, oras. Apenas uma batida a mais, daquelas para te tirar do caminho que você vem traçando com prazer. Prazer. Ô palavra que não pode nos escapar. Sem ela, a vida fica rara, se esvai. O outro se abre à inveja, deixa de acreditar e passa a mirar somente o que não é dele.
Trombadas são para isso: mexe com nossos pensamentos, nos incomoda. Nos sacode e nos impulsiona.
E para cima.
Estou de volta.

domingo, 12 de outubro de 2008

Bom dia, Cris

Há tempos eu não ouvia o canto da madrugada.
Não passavam das 4h30 e, quando descemos do carro, surgiu aquele canto em vários.
Eu olhava as árvores à procura de uma forma. Mas o canto daquele bando de sabiás vinha sem assinatura única. Olhei para o céu, em plena brincadeira de azul-escuro-que-vira-claro, à espera de ser invadido pelo amarelo do sol.
Então me pareceu que o canto vinha mesmo era do céu.
Ou tudo aquilo era vontade de um sonoro "Bom Dia, Cris".

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O menino que tinha mãe suspiro e pai cambalhota

Gustavo caiu na tigela de suspiros. Não, nada disso. Quem caiu foi Virgínia, da Marina, e na xícara de leite.
Gustavo estava cavocando a tigela de suspiro em busca da mãe. Ele tinha uma mãe-suspiro.
Muito desligada e doce – como qualquer mãe-suspiro – ela sempre deixava Gustavo preocupado. Depois do lanche, onde teria ela se metido?
Só mesmo o pai-cambalhota para encontrá-la. Sim, ele também era filho de um pai cambalhota. Alegre, dando voltas sem parar, o pai cambalhota levava a vida aos giros, no maior pique.
Atrapalhado em busca da esposa, o pai cambalhota tropeçou e rolou tigela de suspiro abaixo.
Gustavo, que era preocupado, mas não mal-humorado, caiu na gargalhada, daquelas que só um pai cambalhota pode provocar.
A mãe-suspiro, sempre distraída, foi pega de surpresa. Mal se deu conta de que estava perdida, pegou o marido rodando sem parar e o filho em lágrimas de tanto rir. Achou a cena tão estranha quanto engraçada e se pôs a girar e rir, como uma família unida adora fazer.
Só que o pai cambalhota não conseguiu segurar as próprias voltas e caiu por cima da mãe suspiro que virou quase uma paçoca. Mas não era esmagamento. Era abraço.

(para a Luciene e Gustavo, o filho poeta)

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Como vivo de coincidências...

Minha amiga Silvana Tavano havia lincado as voltas de Paul Newman na bicicleta em Butch Cassidy...

http://diariosdabicicleta.blogspot.com/

domingo, 28 de setembro de 2008

Juntos



















Elliot Erwitt fotografou o amor.

sábado, 27 de setembro de 2008

Paul, os olhos azuis

Desde a infância ele foi a minha referência de beleza: os olhos tão azuis como eu nunca vira, o rosto que parecia ter sido esculpido por um grande artista. Ainda hoje olho e não acredito. Não parece verdade.

Os filmes dele sempre estavam na televisão de casa, para deleite de minha irmã, fanática pela estrela de Hollywood e de minha mãe, que a ensinou a paixão pelo cinema.
Também sempre foi a referência de um grande amor: soube cedo do casamento inquebrável dele com a atriz Joanne Wookward, a despeito das loucuras do mundo das celebridades.

Paul Newman era, claro, referência de atuação: sua beleza só acrescentava seu talento. Nos filmes, o ar de cafajeste, quase sempre bandido, unia uma qualidade à outra, para suspiro da mulherada em casa.

Ontem, passamos a tarde vendo uma lista quase infinita de filmes e os dele eram os primeiros a serem lembrados, os mais queridos. Sabíamos da possibilidade da morte, mas não que ela aconteceria no dia seguinte. Resta-nos, agora, rever seus clássicos e atuações, como fazemos desde que me conheço por gente.



Mesmo porque, poucas seqüências me dão tanto prazer de lembrar quanto a dele rodando na bicicleta em Butch Cassidy e Sundance Kid ao som de Raindrops Keep Falling On My Head, com BJ Thomas. E de sua gargalhada, o olhar repleto de charme, o suspiro da minha irmã. Tudo junto, nas boas memórias que a gente guarda bem e usa sempre.







sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Filmes da vida

Assisti estes dias ao Crepúsculo dos Deuses, com o maravilhoso William Holden...
Eu o reencontrei ano passado, quando vi Quando Paris Alucina, em que ele contracena com Audrey Hepburn...

Liguei para a minha irmã, minha cinéfila preferida, e disse:

- Me apaixonei...
E ela disse:
- A mãe também adorava...
E a gente gosta de coisas que nem sabia?
Me lembrou um poema da Alice Ruiz:

Lembra o tempo
que você sentia
e sentir era a forma mais sábia
de saber
e você nem sabia?

sábado, 20 de setembro de 2008

O deslizar

Já passava das onze da noite, li, peguei no sono.
Quando entrava em um daqueles estágios mais profundos (não sei qual...) ouvi um zumzumzuuuuuuumzum. Vi que o barulho vinha da rua. Mau humor. Levantei brava, com raiva de o sono ter sido me arrancado.
Abri a janela com força, cheia de vontade.
Vi o zumzuuumzummmm. Ou algo assim. Não era abelha, claro. Era um garoto.
A cena foi uma das mais lindas que vi na cidade. O silêncio da noite foi interrompido pelo deslizar deste desconhecido pelas curvas da ladeira em que moro.
Zuuuuum zaaaaaaam.
Derrapava e parava.
Com vontade, estava sempre pronto para recomeçar. Pegava o skate nas mãos, subia rumo a mais uma descida solitária. Só dele.
De novo zummmm zaaaaaaaam, derrapava.
Ele não parava de tentar.
Mas não eram tentativas.
O caminho era a diversão, o prazer.
Ele me tirou o sono e me deu a noite. Noite que se misturava à cor da rua.
E deu beleza ao asfalto.

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Passos do passado

Incrível estar aqui nas Minas Tão Gerais.
É como dar passos pelo passado: o cheiro do ouro e da gente que morreu por causa dele. O rastro de quem procurou sobreviver, enriquecer. Quem não se importou em explorar. Quem achou que isso era o correto. Até os incofidentes eram contra a escravidão.
Escravidão. Que tipo de loucura foi esta? Que tipo de loucura foi esta que não parecemos nos importar tanto? Que tipo de loucura foi esta que não parecemos nos importar tanto e que aí precisamos visitar museus para lembrar?
E as igrejas? Tanto ouro. Por que a vida valia tão pouco e Deus deveria ser medido nestes minerais?
História que deveria ser contada somente desta maneira.
Assim deveria ser a escola. Os alunos deveriam entrar nas minas, como a que entrei hoje. Sentir o arrepio do medo, as lembranças daquele horror. Tudo em nome de uma raça. Para relembrarmos nossos tempos de Hitler em terras brasileiras. Somos tudo isso.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Minas é Minas...

Da janela lateral do quarto de dormir
Vejo uma igreja, um sinal de glória
Vejo um muro branco e um vôo pássaro
Vejo uma grade, um velho sinal
Mensageiro natural de coisas naturais
Quando eu falava dessas cores mórbidas
Quando eu falava desses homens sórdidos
Quando eu falava desse temporal
Você não me escutou
Você não quer acreditar
Mas isso é tão normal
Você não quer acreditar
E eu era apenas
Cavaleiro marginal lavado em ribeirão
Cavaleiro negro que viveu mistérios
Cavaleiro e senhor de casa e árvores
Sem querer descanso nem dominical
Cavaleiro marginal, banhado em ribeirão
Conheci as torres e os cemitérios
Conheci os homens e os seus velórios
Eu olhava da janela lateral
Do quarto de dormir
Você não quer acreditar, mas isso tão normal
Você não quer acreditar, mas isso tão normalum cavaleiro marginal, banhado em ribeirão
Você não quer acreditar

Vir aqui é entender isso... é estar nesta janela o tempo todo.
Cheiros, sabores, história.

quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Meu primeiro Mia Couto...

"o sonho é o olho da vida".

Esta é apenas uma das frases que provocam vai-e-volta em Terra Sonâmbula.

Mia parece mesmo deslizar como um gato pelas palavras, brincando como se fosse dono de todas elas. As histórias se entrelaçam, se soltam, se amarram de novo e voltam correndo, independentes. Você tem a sensação de muito, a leveza do pouco.

Sem dúvida um tempo a ser valorizado, a cada virar de página.

Não, isso não é uma resenha.
É um desabafo. E dos melhores.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Generosidade e dualidade

E ela teve de se dividir em duas. Uma se prestava à generosidade sem espera de trocas, sem economizar sorrisos, sem esforço, natural.
A outra, surgiu mais dura e áspera, para que sua parte generosa não se perdesse na ingratidão dos outros.
Tenho como falar sobre o assunto sem ser brega ou até cair no ridículo?
Tenho.
Aprendi isso após assistir A Alma Boa de Setsuan, com a querida Denise Fraga, no Teatro Renaissence. No texto de Brecht, ela e elenco desfilam aos nossos olhos idas e vindas, trapalhadas, tentativas, acertos, enganos, voltas-atrás, amores, amizade. Assim como é nossa vida. Com histórias de perdas e injustiças muito bem representadas e identificáveis, da platéia saí com esperança. E, esperança, como sabem, é uma escolha: ela está sempre ali, pronta para nos dar a mão. Mas, por vezes, insistimos em olhar o outro lado, acharmos que devemos ser forte, que ser enganado é sinal de fraqueza.
Mas não é. Ô, se não é.
E foi o que vi ali. É o que vejo em cada sorriso de criança, em cada “obrigado” na padaria, a cada novo amigo feito, a cada reencontro com antigas e boas memórias. É renovação pura. De quem, sim, às vezes tem de se dividir em duas ou mais para dar conta de si mesma. Mas que adora ver na poesia e na literatura o motivo para generosizar por aí. E não só nos textos. Na poesia e na literatura que vemos todos os dias, nas ruas, nos desconhecidos e nos nossos. E viva a pieguice.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Hoje eu vi literatura...

Uma busca pelas palavras. Puxa pela memória, junta sílabas, sorri sem graça... lembra o nome correto, usa de um jeito diferente e provoca muitas risadas.
Todos riem, mas, no fundo, estão emocionados: quando aqueles olhos brilham, cheio de dúvidas em busca da palavra perfeita, é uma viagem que fazemos em nós mesmos. Já passamos por esta angústia e mantemos esta busca sempre, loucos para acertar, loucos para emocionar, como esta criança, que me deu hoje momentos lindos desta adorável parceria com as letras e sons.
Isto é literatura. A literatura que está sempre a minha volta, letrando, vivendo, sorrindo para mim. Obrigada Olivia. 

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Foi

Já tenho saudade.
Melancolia da espera da lembrança à frente.
Penso o depois, como se fosse um tempo atrás. Nostalgio o que vivo agora, com olhos de quem viu acontecer e gostou.
E dói.
Vem um suspiro. Penso no depois do hoje, quando o tempo ainda está no gerúndio, calmo, no ritmo que pode, alcançando o possível, sonhando o porvir.
E alivio. Passei por isso, oras. Expectativa renovada.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

A mim me importam as pessoas...

Gosto de histórias, dos gestos, do jeito de contar. A empolgação, o abraço.
Às vezes rola até um bater de palma!
Adoro isso. De ver como elas se comportam diante de uma dificuldade.
De ver como seguram os garfos. Pelo que os olhos brilham.
Fico observando nas ruas, penso que vida as levaram até ali, naquele momento.
Quando estou com alguém especial, quando arranco uma gargalha, um suspiro. É o que vale a pena.
Multiplico por mil este sentimento quando o outro é a criança.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Muitas vezes é curto o que se tem a dizer...

Fiquei semanas sem escrever aqui, mas...

O fato é que um de meus maiores prazeres é dirigir num final de tarde
e olhar o mundo pelo retrovisor...

sexta-feira, 4 de julho de 2008

O menino da cápsula

Ele não lembra quem disse, ou onde ouviu. Mas a informação tomou-o como um forte estalo:
- Uma cápsula que resista ao tempo?!? O que eu colocaria nela para que o mundo saiba quem fui eu?
Quem sou eu? Perguntou-se insistentemente. Depois resolveu perguntar aos pais, aos amigos da escola. O padeiro que ele via todas as tardes. O seu Zé que fica na porta do clube.
Foi para casa cheio de si e começou a procurar no quarto o que ele poderia colocar dentro da cápsula.
A bola amarela e roxa, que ele ganhou da tia Sônia.
O caderno de frases que ele anota das músicas que mais gosta.
O tênis que ele guardou. Não dá mais para usar, mas ele não quis jogar fora.
Fotos. A viagem com os pais por Minas Gerais, o aniversário no acampamento.
- Cabe mais uma coisa.
Seu olhar foi direto para a prateleira encantada (como ele costumava chamar o lugar dos livros).
Que dúvida! Marcelo, Marmelo, Martelo? A Bolsa Amarela? Peter Pan? Crônias de Nárnia?
Pensou e escolheu. Não revelou a ninguém.
Ele não tinha quintal para enterrar. Pegou uma caixa de presente usada, colocou tudo lá dentro, enfiou no armário, lá no fundo. Cobriu de roupas. Sentou-se na cama, olhou, orgulhoso.

E torceu para alguém achar.

Ele cresceu. Passou anos morando na Europa, conheceu países, povos, culturas. Um dia, voltou para casa, de vez. Os pais ainda moravam no mesmo lugar.
Assistindo a um programa de televisão, ouviu o assunto da cápsula, teve o mesmo estalo de anos atrás.
Correu para o quarto, para espanto dos pais. Abriu os armários, tirou tudo. Achou. A caixa estava lá, do jeito que ele deixou.

Abriu a "cápsula". Suspirou a cada retirada. Viajou pelos anos, pelas lembranças. Vieram cheiros, sabores, sensações. Abraçou a caixa como quem reencontra um velho amigo e chorou a emoção.

(ao meu amigo Peterso)

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Pisca e Plagia

A vida, amigo, é um pisca-pisca.
A gente nasce, começa a piscar.
Pisca e chora.
Pisca e é entubado pelo pediatra neonatal na maternidade tecnológica.
Pisca e mama, pela primeira vez.
Pisca e vê os olhos da mãe, sorrindo.
Pisca e ela sorri de novo, por causa da piscadela.
Pisca e engatinha. Pisca e anda. Pisca e fala.
Pisca e pede.
Pisca e assiste a.
Pisca e escolhe o cheiro, o gosto.
Pisca e abraça um amigo.
Pisca e brinca.
Pisca e lê.
E aí pisca, pisca, pisca e conhece o mundo. E não pára mais.

(Uma homenagem a Monteiro Lobato, provocada por Gabriel Perissé)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Oito anos

Ir à escola sozinha foi um grande ganho. Cresci.
Subia um quarteirão, caminhava mais uns quatro até a faixa de pedestre. Apertava o botão, sempre com muita força. Aguardava o homenzinho verde, lá no alto. Concentrava-me. O tempo era curto. "Mesmo com o homenzinho verde, olhe para os lados antes", ela avisava. Homenzinho verde, olhar para os lados. Pronto. Não corria, andava depressa. O tempo podia acabar.
Descia a rua comprida, em poucos minutos estava no colégio.
A tarde passava. O farol me aguardava de novo e os quarteirões se repetiam contrários. Abria a porta e já a via na cozinha. Ela abria os braços, eu corria. Aquele cheiro de abraço, o encaixe perfeito. Estava em casa.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Li não li

Sempre a dúvida, a angústia, a culpa.
Procuro a leitura por prazer, mas o questionamento afasta, empurra para o outro lado.
O tempo vai.
Na busca, partes começam a se desprender da memória.
Folheio as páginas como quem folheia lembranças: tem cheiro, cor desbotada, casa, abraço.
Não há sensação, palavra, sentido ou verso que dê conta do tempo. Do tempo dos livros, do número de páginas, da profundidade de emoções.
Não leio rápido. Sinto cada palavra. Sentir, leva tempo.
Mas continuo.
Remexo na infância, encontro Ana Maria, Monteiro, os contos clássicos, em várias contações. Respiro.
Remexo na adolescência, chego a Machado, arrepio de Eça.
Quem mandava em mim era a música, me embebedava de poesia. Suspiro.
Remexo as memórias e vejo que vivo de coincidências. Cruzo livros, leituras, indicações, amigos. Vejo.
Adquiro olhos de ver.
Caio em Manoel de Barros, tropeço sempre em Pessoa, suspiro com Cecília Meirelles.
Mas vivo mesmo é me encontrando com Clarice. O li não li perde a importância. Sinto, entendo.
Releio Clarice. E releio a mim. Às vezes não dou conta. Mas não vivo mais sem.

(após provocação de Nelson de Oliveira para poemizarmo-nos)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Domingos

Há quem diga que o domingo causa preguiça. O acordar tarde, o almoçar sem pressa, mais tempo para ler o jornal, o encontro com os amigos no fim de tarde.
Eu gosto.
Me lembra o Fantástico, claro. Tem gosto de macarrão, cheiro e cobertor no sofá.
Adoro mesmo é o silêncio. Tem som de passarinho.

domingo, 15 de junho de 2008

Encontro com Kandinsky

Aconteceu no Centro Cultural São Paulo.
As cortinas abriram-se, o primeiro a aparecer foi o pintor.
Depois veio a tela branca. E as cores. As formas.
Kandinsky foi surgindo. Desta vez, em dança. E foram círculos, giraram em mim, no azul, no amarelo. Correram as curvas, saltaram o quadrado e os pontos.
A reta, determinada, correu meus olhos, como música.
Uniram-se todos. Havia crianças. Cada uma delas ainda mais envolvida do que eu.
Unimo-nos todos. E a Kandinsky.

(sobre o espetáculo Lúdico, da Cia Druw)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O rim e o drops

A aula de inglês do intercâmbio em Nova York focou em um tema bem específico: transplante de órgãos. Naquela classe com traseuntes do mundo inteiro, a conversa girou em torno de códigos de conduta, possibilidades, questões - literalmente - de vida e morte.
"Bizarro", pensou a garota, após se encapotar com casaco, gorro, luvas. Depois, a mochila e a câmera fotográfica no pescoço. Nova York é para ser fotografada, qualquer canto, qualquer pessoa.
O passeio de turista acabou e ela termina o exaustivo andar para lá e para cá com uma volta do confuso - mas finalmente decifrado por ela - metrô novaiorquino. Entou no vagão apenas quatro estações antes de seu destino, Penn Station. Uma antes, levantou-se do banco para já se colocar a postos, perto da porta. Olhou mais uma vez pela lista de estações - checar nunca é demais.
Uma quase tosse veio nela. Não segurou, quase tossiu, de fato. Um homem com a aparência indiana olhou atento. Perguntou a ela se estava passando mal. Ela não falava bem o inglês, mas entendia razoavelmente. Disse que não, emendou um "it´s just coff". Ele entendeu. Sacou do bolso um drops. "Pode ficar com a metade".
Foram segundos. Ela agradeceu a gentileza. E ele disse que era uma espécie de retribuição: ele havia recebido a maior gentileza do mundo. Era um transplantado. Ele ganhou um rim de alguém que nunca viu. Detalhou a ela sobre a cirurgia, o antes e depois. E como as pessoas o olhavam de um jeito diferente, principalmente quando ele contava sua história. E como ela, a menina, era gentil em ouvir tudo. E sorrir.
"Você tem um sorriso gentil", ele disse a ela.
O trem parou, ela desceu.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Vamos nos embriagar

Em uma só noite, grandes passeios.
Teve Fernando Pessoa, Cora Coralina, Bandeira.
Sentimento de Vinicius de Morais, Chico Buarque, Alice Ruiz.
Estranheza a Olavo Bilac. Complicações de Augusto.
Lembranças a José Paulo Paes.
Poeta advogado, químico, farmacêutico mineiro.
Erotismo e jornalismo, rimas e religião. Palavras soltas, amarrações poéticas, definições indefinidas.
Deleites em vaivém, palavras voaram como num poema de Cecília Meirelles.
Belas experimentações, adorei!

E, para inspirar:

Tudo acaba nisso é a única questão
Embriagar-se é preciso
Não importa que horas são
Não ser escravo do tempo,
Nas escadarias de um palácio,
Na beira de um barranco ou na solidão do quarto
Embriague-se, embriague-se
De noite ou ao meio dia
Embriague-se, embriague-se numa boa
De vinho,virtude ou poesia
Tudo acaba nisso, é a única questão
Embriagar-se é preciso não importa que horas são
Pra quem foge, pra quem geme,
Pra quem fala, pra quem canta,
pra não ter medo da maldade, pra acordar toda a cidade
Embriague-se, embriague-se
De noite ou ao meio dia
Embriague-se, embriague-se numa boa
De vinho,virtude ou poesia
Embriague-se...
Embriague-se!
Pra quem foge, pra quem geme,
Pra quem fala, pra quem canta,
pra não ter medo da maldade, pra acordar toda a cidade
Não ser escravo do tempo,
Nas escadarias de um palácio,
Na beira de um barranco ou na solidão do quarto
Embriague-se, embriague-se
De noite ou ao meio dia
Embriague-se, embriague-se numa boa
De vinho,virtude ou poesia

É uma livre adaptação do poema de Charles Baudelaire musicada pelo Barão Vermelho

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Definições das crianças

Quem não tem uma para contar?
São ótimas para o nosso SPC - Sistema Pessoal de Convicções.

Adorei uma definição que uma criança deu para biblioteca. “Biblioteca é um lugar cheio de silêncio”.
Estas são do Dicionário de Humor Infantil, do Pedro Bloch:
- Relâmpago é um barulho rabiscando o céu.
- Palhaço é um homem todo pintado de piadas.
- Sono é saudade de dormir.
- Arco-íris é uma ponte de vento.
- Deserto é uma floresta sem árvores.
- Felicidade é uma palavra que tem música.
- Rede é uma porção de buracos amarrados com barbante.
- Vento é ar com muita pressa.
- Cobra é um bicho que só tem rabo.
- Avestruz é a girafa dos passarinhos.
- Calcanhar é o queixo do pé.
- Chope é o refrigerante de adulto.

E o meu amado livro Mania de Explicação, de Adriana Falcão , uma espécie de dicionário poético das coisas que não conseguimos definir para as crianças. Lindo. Não consigo ter preferidas, mas há algumas que adoro:
- Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue. - Amizade é quando você não faz questão de você e se empresta pros outros.
- Certeza é quando a idéia cansa de procurar e pára.
- Perdão é quando o Natal acontece em maio, por exemplo.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Vamos sonhar, papai?

Quando eu era menor, e precisava ter sono na hora de dormir - sabe que, com criança, isso é mais terrível ainda, né? - eu deitava na cama, fechava os olhos e começava girar imagens na minha cabeça.
Eu girava mesmo. E uma entrava no meio da outra, mudava de forma, pegava emprestada a cor de outra, devolvia.
Tinha uns riscos, como quando a gente consegue fotografar o movimento da luz, sabe?
Lembrei disso por causa de uma brincadeira. De dois amigos meus, pai e filho.
Eles estavam brincando de sonhar.
Era mais ou menos assim:
- Pai, eu posso escolher meu sonho. É assim: primeiro, feche os olhos. Bem fechados. Depois, deite a cabeça. Aconchegue-se no travesseiro. Mas tem que ser bem gostoso, pai! Agora vai lá e procura, pai! Procura mais. Achou?
O pai ajuda:
- E se a gente lembrasse da praia? Da gente correndo para a água, sentindo ela fria entrar pelos nossos pés. E depois quando corremos na areia, ela gruda na gente por causa do molhado. Dá aquela coisa áspera, a gente quer tirar, mas é gostoso ter.
O menino abre os olhos.
- Pai! Corre comigo, vamos sonhar!

domingo, 18 de maio de 2008

O sabiá do meio

Pousou na grama e não reconheceu. Foi o que pensei quando o vi ali parado, entre um trânsito e outro. Ele acha que ali é o Parque do Ibirapuera. Pousou por engano.
Fitou os carros, os pedestres. Viu algo parecido diversas vezes. 
Mas ali não era o seu lugar. Calculara mal o trajeto?
O sabiá ali, laranja por baixo, olhos atentos ao movimento.
Eu parei de ouvir e olhei. Encontrei seu canto. O canto de todos os meus dias. O canto que me acompanhava no caminho da escola, no acordar da minha mãe. O canto que está à minha espera no trabalho. O canto que se mistura aos outros no parque. Mistura-se mas não vira um só. Cada um tem o seu. 
Quantos cantos e vôos nós interrompemos de tanto barulho?

sábado, 3 de maio de 2008

Minha primeira história

O pessoal que trabalha aqui vive falando de mágica. Dizem que, por mais que tenha formação acadêmica ou técnica, só com ela a educação acontece por completo. Eu, como sou uma escola, feita de tijolo, tinta, madeira, areia e cimento, fico um pouco confusa com assuntos não-concretos. Mas estou aprendendo. Aprender, aliás, é um verbo que ganhou outra cor por aqui. Essas pessoas que acreditam em mágica estão mudando minha concepção sobre vários assuntos. Elas dizem que, para construir, precisamos desconstruir primeiro. Que, para mudar, temos de refazer conceitos e desfazer certezas. E isso soa para mim muito natural. Como se eu sempre soubesse que é assim que se faz. Outro dia, naquelas conversas maravilhosas entre professor e criança, um aluno se deu conta de que professor é aquele que - de repente - aprende. Igualzinho falou há muitos anos o escritor João Guimarães Rosa, e que o meu querido amigo, o educador português José Pacheco, aquele que criou a Escola da Ponte, vive repetindo para a gente não esquecer nunca. O melhor é que esse aluno se deu conta disso sozinho. Aqui, os alunos são consultados até sobre o que e como querem estudar. Todo mundo aprende junto e sozinho. Cada um no seu tempo, no seu ritmo. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que tudo era cinza: as paredes, os uniformes e o humor de professores e alunos.Em educação, quando pensamos que está tudo feito, há muito o que fazerAté que um dia, há nove anos, passei a receber a visita de uma pedagoga engraçada, que gesticulava muito. Quando Ana Elisa Siqueira passou no concurso e assumiu a direção da escola, percebi nela um brilho diferente. Era uma mulher muito esperta e logo descobriu o que estava embaixo do cinza. Viu que os pais das crianças reclamavam das constantes faltas dos professores e da indisciplina na sala de aula. Estava na hora de partir para as soluções. Começaram as rodas de conversa. Alguns não entendiam o que tanto a Ana queria mudar. Mas essa Ana era cheia de querer e foi, aos poucos, seduzindo a todos. Primeiro, tirou as grades que reduziam meu enorme pátio e cercavam as crianças. Depois, tratou de pintar de laranja minhas portas. Mais algum tempo e as paredes também estavam coloridas. Era a tal mágica começando a acontecer.O que mais ajudou a Ana foi que, em trabalhos anteriores com pedagogia, ela conheceu bem a comunidade que vivia por aqui. Ela sacou, por exemplo, como era bom ter crianças, filhas de pais que fazem doutorado na Universidade de São Paulo, aqui ao lado, misturadas a crianças com pais analfabetos. A diversidade propiciava uma palavra que adoro ouvir: democracia. Sob o comando da Ana, alguns funcionários, pais, especialistas e parceiros das mais variadas áreas foram se envolvendo com os meus muros, sugerindo idéias e projetos. Um dia marcante foi quando ouvi o som do primeiro berimbau. Era música no meu coração. Se escola tem coração? Claro, eu tenho centenas deles. Tratava-se do projeto de cultura brasileira. Com circo, teatro, capoeira e danças brasileiras e muitas crianças. Alguns pais se animaram tanto que não saíam mais daqui. Até nos recreios, eles vieram ajudar. Foi então que a direção da escola decidiu contratar uma consultoria pedagógica, da renomada psicóloga Rosely Sayão. Numa das reuniões com os especialistas, ela exibiu um vídeo sobre a portuguesa Escola da Ponte. Quando os pais ouviram as palavras 'autonomia' e 'solidariedade', tiveram a grande certeza: 'Essa é a escola que queremos para os nossos filhos'.Fiquei ansiosa. Afinal, como seria? Qual era a fórmula do José Pacheco? Poderíamos repetir aqui? Um pai muito corajoso, Gilberto Frachetta, venceu as dúvidas, colocou debaixo do braço um projeto redigido por psicólogos, educadores, mais o consenso dos outros pais e, no final de 2003, foi bater à porta da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. A tal secretária não teve como recusar. Janeiro de 2004 chegou e a Ana veio com outra idéia maluca. As paredes das salas deveriam ser derrubadas. Isso mesmo. Quatro salas se tornaram uma! Duas lousas, uma de cada lado, crianças reunidas em grupos de cinco e três educadores por sala. Não há mais aulas únicas, preparadas para todos os alunos. A professora Cleide Portis ficou assustada. Nova na casa, imagine, ela entrou bem no meio da revolução. Outro dia, contou o que sentiu na época: 'Dos 20 anos que tenho de escola pública, a docência era algo solitário, eram os meus alunos, meu espaço, meu pensar. Aprendi a compartilhar. Dividimos as idéias e o material e agora as crianças aprendem juntas, com os colegas, no seu ritmo'. Notei que mudar de rotina é muito difícil para o adulto. Eles têm receio de experimentar e não dar certo. O que adianta derrubar as minhas paredes se não derrubarem as paredes deles mesmos? Mas, as crianças, ah, elas tiram de letra. Aqui, como na Ponte, seguem um roteiro de estudo sugerido pelos educadores e decidido por elas. Não há desordem ou espaço para indisciplina: elas têm liberdade para andar pela sala, mas, para chamar o professor, cada uma espera sua vez. No salão maior, por exemplo, estão as crianças correspondentes à primeira e segunda séries do ensino fundamental. Misturam-se as que já sabem ler e as que ainda não aprenderam. Para Amanda, que está na segunda série e já lê muito bem, não há o menor problema. 'Ficamos juntos para um ensinar ao outro o que sabe..' Outro dia, uma mãe contou que seu filho deixou de ser tímido, agora conversa mais em casa. Com a liberdade, as crianças ganham conhecimento. Com conhecimento, adquirem autonomia. Com autonomia, exercem a solidariedade. Hoje olho para mim e parece que todo mundo anda sorrindo. Ainda noto olhares de dúvida. Houve professor que preferiu sair e pai que optou por uma outra escola. Eu acho ótimo. Porque o importante é ter a chance de fazer escolhas, coisa rara na rede de ensino público do Brasil. Esqueci de contar que nem toda a escola entrou no novo projeto pedagógico de uma vez. Não havia como, era muita novidade e pouca experiência. Mas, agora já temos 10, 20, 30, 50, 60 e 70 anos no projeto. Foi uma forma de, em 2006, colocarmos todas as crianças falando a mesma língua.Dos tijolos derrubados, o pessoal daqui construiu um forno. Daqueles para fazer pão e pizza em dias de festa. O amigo Pacheco anda apreensivo. Disse que caminhamos em um ano o que a Ponte andou em 30. Outro dia, poetizou: 'É preciso cuidado, pois o importante não é velocidade, mas direção'. Por isso que, como ele diz, em educação, quando pensamos que está tudo feito, há muito o que fazer. É essa a vida que corre entre as minhas paredes: muitos caminhos a serem percorridos, muita coisa para consertar. Mas, se para a pequena Amanda o melhor lugar do mundo é aqui e agora, é porque já temos uma direção.

Publicado na Revista Crescer, em outubro de 2005Uma escola diferente, municipal de São Paulo, inspirada na Escola da Ponte, sem séries, salas de aula compartilhadas com crianças de várias idades

Duas noites alucinantes

Junto ao folhear da revista semanal, o som da campainha. Pelo horário levanto assustada, ninguém toca a esta hora. Ligo o canal de TV que nada transmite e vejo na porta as costas de alguém. Mais três vezes. Quando sai, resolvo ir à janela e descubro então o conhecido. O carro fora roubado.
Pedi socorro afetivo, desci e confirmei a notícia. Manhã seguinte, demora esperada para convencer a segurança que não nos dá segurança alguma de que o delito ocorreu, o culpado foi o outro. Problema da corretora de seguros, espera de todos.
Dia seguinte, novo sobressalto. O carro foi encontrado, senhora. A voz da policial me assustou mesmo com boa notícia. Boa? Segui para nova delegacia, suspense. Saímos atrás da viatura que pára. Policiais pedem a minha companhia para entrar em um estacionamento. O que é este lugar? Local de desmanche? Estacionamento da polícia? Não, senhora. Aqui é um estacionamento particular: seu carro foi meio para roubar outros três. Olha ele ali abandonado. Pode ver.
Posso ver? Mas posso mexer em tudo se tudo foi mexido? Claro. Mexo, então. Tudo revirado, mas tudo lá. E com bônus. Embalagens de equipamentos de sons. Outro crime. Mexo, ligo, sento. Posso ir? Não. Esperamos o delegado decidir. Mexo, sento. Aquilo ainda é meu? Largo aqui?
Não pode mexer mais, senhora. A perícia vem fotografar o veículo, ele foi usado num crime. Sinto-me longe do CSI americano e bem perto do caso Isabella em que todos entram e mexem no local após o crime e, depois, a polícia. Quando vem a perícia? Não sei.
Enquanto isso, papo de tiros, de onde estão ladrões, de qual é o PCC. Frio aumenta. Mal-estar. Sobressalto mais fome mais descaso. Sou a vítima e a mais castigada. Como se não fosse um serviço prestado, mas um favor pedido. Quero ir para casa. Não posso.
Perícia chega seis horas depois. Consegui dormir um pouco. Posso mexer de novo no carro, vou para a delegacia. Mais duas horas à espera. À espera da conversa, à espera da troca de plantão, à espera do sistema ligar, à espera do bom humor, das piadinhas sem graça, à espera da falta de respeito a mim e aos policiais militares que passaram a noite naquela situação e que se solidarizam comigo.
Mas nada importa. Passo mal. Não agüento. Eles se sensibilizam e fazem o trabalho que foi incumbido a eles, no momento do emprego. Não entende os detalhes, confunde-se. Grampeia, alisa o papel, julga. Acredita ter feito um grande trabalho e espera agradecimento. Devolvo. É hora de trabalhar.

segunda-feira, 28 de abril de 2008

O Dia Em que Conheci o Arnesto

Nem parecia verdade. Ele ali, caminhando com dificuldade e firmeza, com o peso e a certeza de que faz parte da música popular brasileira.
Quando o seu nome foi anunciado, quem acreditava na surpresa? Era o Arnesto, o amigo do Adoniran, aquele que deu o bolo na turma de amigos. Ele foi até lá, em seu passo manso, a blusa azul, os cabelos em neve, e o humor a toda: explicou que tudo não passou de uma brincadeira do amigo compositor. Arnesto Ernesto sempre esteve lá, esperando os amigos. E continua até hoje, faz de conta que ainda conversa com Adoniran, agradece a simpatia dos Demônios da Garoa, que não deixam de musicá-lo, a cada encontro.

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Manoel palavra-nos

Manoel de Barros me inspira. Nenhuma novidade.
Não só pelas palavras e palavra-nos e pelas não-palavras. Mas pela liberdade. Manoel é livre. As palavras são apropriadas por ele, e devolvidas a elas. Ele dança. Em volve. Envolve. Joga. Pega de volta. É tudo dele, no fundo. Também nosso. Delas. Das palavras.

Este é dedicado ao Marcelo.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Escrevo 24 horas

Por que reduzimos o ato de escrever à escrita em si?
Eu, por exemplo, escrevo enquanto dirijo. Muito mesmo. Os textos vão se colocando, palavra a palavra, frase a frase. Cortam-se, colam-se. Sobem e descem. Tanto que eu gostaria que a direção se transformasse em um teclado. Ou um caderno. Já pensei em ter daqueles bloquinhos que grudam no vidro.
Mas aí só conseguiria algumas palavras por semáforo.
Pensei em um gravador.
Eu já falo tanto sozinha, seria ainda mais produtivo. Escrevo 24 horas por dia.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

O homem moderno, o homem de Mia Couto

Ao ler, ouvir, saborear, sentir e experimentar Um Homem da Rua de Mia Couto, a inspiração tocada em mim tinha tantas palavras que uma só me pegou no caminho de volta a mim: compaixão.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Por que eu escrevo?

E no meio da aula do curso sobre escrever vem a pergunta deste título.
E no meio da aula do curso sobre escrever vem a pergunta e a lembrança de um post neste blog, um post antigo.
Exatamente quando eu perguntava a mesma pergunta. Na verdade, eu me perguntava: "por que escrever"
E escrevi:
"Engraçado que fiz este blog porque o que eu escrevia já não estava mais cabendo em mim. Queria espalhar para o mundo. Mundo.Mas aí me pego esquecendo dele. Meu último post tem 10 dias. Eles vão se distanciando, como a voz do professor na aula chata, quando a gente já está pegando no sono de tédio.E por que será que isso acontece? Por que escrever tem tantas escritas?Escrevo todos os dias quase o dia todo. Mas são funções a cumprir, mensagens diretas. Tem também os emails pessoais, as conversas de MSN, os recados no Orkut.Mas sempre tem alguém que me pergunta "e aí, cris, você tem escrito?". Mas esta é uma outra escrita. A que não tem função.A que você emociona sem saber, se revela querendo esconder.É aquela que te solta a angústia, explode a felicidade, te arranca um sorriso, uma dor.E é uma delícia, mesmo que só de vez em quando.É livre.É por isso que escrevo."

Foi no ano passado.

E escrevo para me libertar de escrever.

quarta-feira, 12 de março de 2008

Momento Tim Maia

"Fiz uma dieta rigorosa, cortei álcool, gorduras e açúcar. Em duas semanas perdi 14 dias".
Até passei da minha neurose por emagrecer, mas isso do Tim tem muito a ver com a relação louca dele com o tempo.
Como tinha Cazuza e tantos outros poetas têm e tinham...
Tempo, prazer, futuro, presente, guardar, aproveitar. Como é que a gente usa estas palavras mesmo?

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

O que realmente importa

"And in the end he love you take
is equal to the love you make"...

Beatles, para Mayara, em seus 18 anos

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

A maturidade da frágil Juno

Já assistiram Juno? Recomendo. Insisti ontem com as minhas sobrinhas: finalmente um filme adolescente em que o adolescente não é nem louco, nem idiota. Adorei.
Porém, ao contrário do que li, não achei a personagem, uma adolescente que engravida e resolve entregar o filho a um casal louco para serem pais (isso muda depois, mas...), uma adolescente supermadura. Nada disso. Ela reage e age como uma adolescente. O tempo todo. Não é porque ela não grita, não chora, não se revolta e dirige com uma barrigão para tudo que é lado que a torna madura.
Juno tem seus momentos de fraqueza, sim.
E dúvidas. E pensa. O triste ali é que Juno é sozinha em suas decisões. Esta é a discussão válida (entre tantas, claro). E, ao contrário do que li hoje de Leandro Fortino na Folha, não tem nada de "naturalmente". Ela se galga na ironia, na força, para dar seguimento a algo que ela decidiu fazer e NÃO teve maturidade para fazer: sexo.
E como faz falta um abraço, não? Sinto tanta falta de ela abraçar alguém, alguém abraçá-la...

domingo, 17 de fevereiro de 2008

O que faz um clássico

Em minhas participações como jornalista de cultura na revista Crescer, não canso de falar sobre a importância da literatura e da arte na vida da gente para nos mostrar quem somos, quem queremos ser, quem não queremos ser...
Defendo os personagens contraditórios, como Peter Pan, Pica Pau, aqueles que assumem nossas dúvidas, culpas, anseios.
Acabo de assistir mais uma vez ao A Felicidade Não se Compra, de Capra. Que maravilha. Excelente filme para assistir em família, na companhia das crianças. Para, quem sabe, elas desde cedo já entenderem que todos temos nossos momentos de fraquezas, de desespero, de desesperanças e que, muitas vezes, nos faz querer desistir de tudo.
Mas é a vida em comunidade, da família, dos amigos nos dá o sentido para mudar o rumo.
É por isso também que Capra fez do conto de natal um clássico, pois as questões humanas não mudam.

Espelhos por toda a parte

Hoje li a notícia que o filme Tropa de Elite ganhou o Urso de Ouro no Festival de Berlim. Com ele, novamente as análises e opiniões.
Este é um exemplo como que em tudo que fazemos, todas as opiniões que damos, não são nada mais, nada menos do que reflexos de nós mesmos.
Muitos dizem e a crítica do Le Monde, por exemplo também, que Tropa é uma apologia à tortura. Para mim, no entanto, ele é e sempre foi uma denúncia da violência que não temos como escapar. Ou você é um policial violento, ou corrupto. E a população está entre um, outro e o tráfico de drogas. O filme é uma denúncia, não uma incitação. Se há quem repita "paga pra sair" como piada, é da própria pessoa, não culpa do filme. Ou agora a gente vai culpar o Hitler por todas as atrocidades cometidas por todos os alemães na segunda guerra? Me poupem.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Leitura desavisada

Fiquei tanto tempo sem postar e olha com o que acabo de me deparar:

"QUANTO MAIS A PROSA INVADE A VIDA, MAIS A POESIA REAGE", Edgar Morin

quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Emília filósofa

A vida é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca.
(...)
A vida das gentes deste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e gemes os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre? - perguntou Visconde.
- Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
O Visconde teve de concordar que era.

(trecho de Memórias de Emília, Monteiro Lobato)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Entre o gosto e o jornalismo

Cultura é gosto.
Leio sobre o assunto desde a adolescência, quando ganhei uma assinatura da revista Bizz. Vivi em música a infância inteira e passei a gostar demais de ler sobre artistas, sobre o mundo, sobre como fazem músicas, sobre como se conhecem, convivem, criam.
Quando comecei a trabalhar como jornalista, ainda na faculdade, este meu lado 'fã' foi começando a ser colocado à prova. Mas eu nem me dava conta disso. Tinha aquele fantasma do ser ético, do não contaminhar meu olhar por causa de minhas preferências, da tal imparcialidade. Só que eu fui vivendo: ia simplesmente entrevistando o pessoal do Barão Vermelho, o Nasi do IRA! e unindo meu conhecimento de vida para fazer pequenas entrevistas. Comecei a notar que substituía ali o gosto por um beijo ou um autógrafo pelo prazer de uma boa entrevista.
Isto continuou quando comecei a produzir um programa somente sobre música brasileira, o Nossa Terra, Nossa Gente, na rádio Imprensa e depois no meu trabalho no Diário Popular. Era maravilhoso. Aprendi demais. E aí esta Cris fã e jornalista continuou aparecendo meio junto, meio em conflito, meio feliz, meio angustiada. Mas sempre foi um prazer. Porque sempre soube, digamos, me comportar. Ao contrário de questionamentos que fiz anos depois, o fato de eu conhecer música, ter ouvido este povo, ter lido sobre eles por prazer - e não por trabalho - me rendeu ótimas conversas, ótimos sorrisos, ótimas entrevistas. Foi assim com o cantor Zé Renato, o sambista Zé Keti, na única pergunta que consegui fazer na coletiva do Chico Buarque, em um bate-papo sobre música negra com João Marcello Bôscoli. É assim hoje num papo com Paulo Tatit, do Palavra Cantada, ou ao entender as referências do grupo mineiro Ponto de Partida com os cantores Meninos de Araçuaí.
Estas palavras foram provocadas em mim por causa de um presente que ganhei ontem. O livro Palavra Cruzada, do jornalista Júlio Maria, marido da minha agora amiga Daniela Tófoli. É sobre a arte da entrevistas sem muita teoria: são as entrevistas publicadas na coluna que ele tem no Jornal da Tarde desde 2004. Eu conheci o Júlio em um dos momentos mais gostosos desta Cris fã-jornalista: na gravação do Acústico dos Paralamas do Sucesso. Aquele dia era somente mais um encontro com esta banda que aprendi a gostar na adolescência e que admirei ainda mais em entrevistas, pela integridade de se manter banda, cuidado com os fãs, com a música, com a preocupação em oferecer bons momentos - e, claro, vivê-los também.
Adorei ver em Júlio que ele lida bem com isso, que ele não se preocupa em saber e ser na hora de entrevistar: é tudo uma coisa só. Preocupado mesmo ele está com a entrevista, em conquistar o entrevistado: o julgamento atrapalha, oras.
E muito, eu bem sei. Trabalhei muito tempo com celebridades que de nada tem a ver com talentos. Mas se este era o meu trabalho, eu fazia o melhor. Se eu podia evitar a conversa sobre o casamento desfeito e o possível ensaio nu em revista, eu engatava um papo gostoso com qualquer um. Sempre descobria algo que a pessoa gostava e aprofundava. Nunca fui maltratada, nunca precisei sair falando mal de artista. Não era eu quem estava em jogo, não eram meus sentimentos, nem minha opinião. Meu trabalho era mais importante.
Eu ando meio estafada de jornalistas. De se intitularem donos da verdade sem a menor preocupação com o quão clichê é esta arrogância. Estou cheia de certos, errados, fórmulas mundiais de como fazer a boa entrevista, a boa matéria, o bom título, a boa pauta. Júlio me confirma que quem é bom, é bom. Basta ser você. Vá atrás de respostas, do que você pensa sobre o assunto, das perguntas que há em você. Jornalista não é burocrático, não é um preenchedor de lacunas. Jornalista é a pessoa que ao invés de ler a opinião dos outros, larga tudo e vai viver experiências. Ou poderia ser isso.
Agora mesmo eu estava aflita para uma entrevista com a escritora Marina Colasanti. Pensei: "como vou falar de poesia, como vou concretizar em uma entrevista algo tão não palpável? Será que sou capaz de ter este papo?". E não é que a entrevista aconteceu com a mais simples das perguntas : "como é escrever poesia para crianças?" e emendei uma ainda mais óbvia "o que é poesia?". E quer saber como foi a entrevista? Ótima! Leve e profunda, como somente um encontro de poesia pode ser. E as entrevistas podem ser assim, bons encontros. Livres. Simples assim.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Pais ausentes, drogas mais do que presentes?

Sei que é começo de ano e a gente quer mais é conversar sobre assuntos leves. Mas é que assisti ao filme Meu Nome Não é Johnny, bem protagonizado por Selton Mello que interpreta um garoto de classe média do Rio, João Guilherme Estrella, um dos maiores traficantes de drogas do Rio de Janeiro nos anos 90. A história é verídica e o filme de Mauro Lima é baseado na biografia assinada por Guilherme Fiúza.
Falo do filme aqui não apenas porque vale como entretenimento. Mas pelas discussões morais, filosóficas – criminais até – que o filme expõe, já bem exploradas em Tropa de Elite e Cidade de Deus. Ele vai por um outro viés que é importante para todos, todos aqueles que acham que criar um filho é tarefa importante, dá trabalho e merece toda a atenção.
É neste aspecto que discordo de uma parte do texto do crítico de cinema da Folha, Ricardo Calil, que bem mencionou a interessante abordagem: “no lugar do costumeiro criminoso pobre, negro e de família desestruturada, o filme nos apresenta um traficante branco, de classe média, morador da zona sul carioca e filho de pais amorosos”. É este “pais amorosos” que questiono. Não li o livro e nem falei com Estrella, mas pelo que o filme apresenta, trata-se de pais ausentes, isto sim. E pais ausentes não podem ser disfarçados de “pais amorosos”. Sorrir e ser permissivo pode ser algo bem diferente de amor, ou um tipo de amor que os filhos não precisem.
Isto se dá claramente no desinteresse do pai de João pelas baladas pesadas que acontecem quase literalmente embaixo de seu nariz (no andar debaixo de sua casa, onde ele permite que o filho faça o que quiser). Também fica bem exposto quando a mãe ganha um colar caro do filho, sorri e, quando perguntada sobre a profissão de João ela diz apenas “não sei, algo no ramo de vendas”, engolindo toda a hipocrisia de uma mulher que simplesmente “deixou a vida do filho acontecer”, parte do discurso emocionante que ele faz no tribunal para assumir que, no fundo, fazia tudo para manter o vício.
Mas, como bem escreveu o psicanalista Contardo Calligaris em sua coluna dia 3 de janeiro no mesmo jornal, o filme permite uma esticada na discussão. Meu Nome Não É Johnny fala de uma relação entre pais e filho que vai além do clichê "pais permissivos" facilitam que a sua "criança" sem limites se meta em encrencas como o excesso de drogas.
Diante de pais que - cada um por seu motivo - meio que desistiram de continuar vivendo, apostam no filho uma liberdade de escolhas, de experiências, projetando nele uma vida que não podem mais ter. Ou que acreditam que não mais possam ter. E quem não vê limites para a felicidade dos filhos, pode não ver limites para tantas outras coisas...