quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Liberdade de sentires


Fiz o cadastro no Museu da Pessoa. A idéia era falar de mim. "Conte sua história" está lá no ícone.

Voltei para cá, o blogger.

Olhei minha foto de criança.

Pensei na minha infância.
Lembrei do 'estado de infância' que Paulo Netho e o seu Cara de Pavio, meu mais recente amigo que adora fazer um Balaio de Dois.
Quem sou eu? Quem fui? Posso contar minha história a qualquer um. Quero contá-la?
O orkut mexeu com a privacidade. Eu falo aqui, todo o mundo sabe lá, na mesma hora. Não consigo colocar fotos.


O youtube revolucionou. Posso voltar no tempo e rever o La Linea, que para minha infância era o "A Linha", o quadro no Globinho que eu mais amava. Vejo-o agora falando engraçado e em várias línguas.
Nunca fiz vídeos lá, mas vira-e-mexe coloco meu nome na busca. Vaidade ou medo?

O que eu fui não tem mais lugar hoje. Está nas lembranças.

Hoje
posso contar
minha história
d
o
jei
to que eu bem
enten
der.
Posso até nem ser eu.
Ser
artuo. Ao contrário.
Brincar com as palavras, ser meu próprio dicionário.
Quem é que vai saber de mim?
Eu mesma.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

De fita e tudo

Dormiam de mãos dadas, colecionavam lembranças.
"E quando eu abria a porta e você se agachava no chão da cozinha só para eu correr e te dar um abraço forte?"
"E quando você dançou na formatura a canção do Queen, o sapato Melissa, a blusa xadrez?"
"E quando você me ajudava nos mapas, apagava com a borracha sem deixar borrão, redescobrindo rios e afluentes?"
"E quando você sorriu pela primeira vez, no meu colo, parecendo agradecimento mas com cara mesmo de presente?"
"E quando você insistia em que eu acoplasse uma fita verde no cabelo quando na verdade eu queria mesmo era sair toda de preto?"
"E quando você me enchia de beijos e eu ficava toda molenga de tanto rir?"
"E quando você me deu a mão, para dormir a última noite juntas, para dizer que eu poderia já, sozinha, me defender do lobo, da floresta escura, dos cestos cheios de doces e da morte?"
E ela descobriu, aos 15, que podia tudo. Só bastava levar a fita verde com ela.

Uma inspiração em Fita Verde no Cabelo, de Guimarães Rosa.

sábado, 18 de outubro de 2008

A festa

- Quem vai cuidar da festa este ano é você - disse ela aos 82, cansada de liderança. 
Ele fez sinal de obediência, mesmo sabendo não haver tempo nem disposição para a tarefa. 
Pensou em como seria o tradicional encontro de família. 
Não mais a prima de falar alto, baixa estatura e humor colado à pele. Não mais a brincadeira com o marido, o orgulho do neto, as piadas guardadas para a grande ocasião. 
Não mais o irmão estilo bonachão, sentado perto da mesa repleta de delícias que ele, pela ameaçadora diabetes e os muitos quilos a mais, deveria mas não resistia. Não mais o riso de lado, a mão na boca, o olhar de um cansaço infinito, uma preguiça de viver aquela vida reservada a ele. 
O encontro era em nome do passado. As crianças pequenas, os irmãos se reencontrando em festa, os cunhados em eterna adaptação. Os avós eram vivos e distribuíam sua sabedorias, enquanto viam os filhos complicarem a simplicidade dos tempos de ontem, da vida pacata, dos poucos recursos, do sossego de quereres. 
Mas não era mais assim.
Os mortos faltavam sempre, a cada ano. 
Os mais novos tinham suas festas, seus namoros, suas vidas à parte.
Entre um grupo e outro, uma turma que se via pouco, que ignoravam preferências, escolhas, profissões. Ninguém sabia o último filme assistido, o jantar inesquecível, o aumento do salário, a briga com o melhor amigo, a dor no quadril. 
Não se conheciam mais. Mas se reencontrariam assim mesmo. 

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Trombadas

Felicidade é coisa esquisita. Ficamos atrás dela, feito loucos. Trabalhamos, estudamos. Beijamos, amamos. Conhecemos, vivemos. Treinamos para isso.
Quando ela chega, parece que todo o tal treinamento desaparece. Ficamos meio bobos. Nos tornamos inocentes, bem diferente da capacidade que possuíamos quando lutávamos para senti-la.
Nos desarmamos. Ficamos vulneráveis. A proteção adormece.
Mas à espreita, estão os outros. Sempre prontos para um deslize, uma distração.
Até que finalmente, atingem. Pego de surpresa, você cai. Não sabe mais reagir a rasteiras, parece.
E leva a trombada. Com o susto, você consegue desviar a direção para o lado, para não machucar tanto. Ameniza, mas bate assim mesmo.
O outro pára, quer ajudar. Não pergunta se machucou. Apenas diz que está ali e vai arcar com as conseqüências.
A batida não é forte, a gente reconhece. Mas dói porque é prova de que você esta distraído. Desatento. Disso você se transforma em frágil. Não acredita, parece maior do que foi.
Desanima, cai. Cai de decepção. A confiança acabou.
Mas passa. Ah, a vida e os 'mas'.
Passa e você olha o 'amassado' e se dá conta: 'vou superar'. É só funilaria mesmo, oras. Apenas uma batida a mais, daquelas para te tirar do caminho que você vem traçando com prazer. Prazer. Ô palavra que não pode nos escapar. Sem ela, a vida fica rara, se esvai. O outro se abre à inveja, deixa de acreditar e passa a mirar somente o que não é dele.
Trombadas são para isso: mexe com nossos pensamentos, nos incomoda. Nos sacode e nos impulsiona.
E para cima.
Estou de volta.

domingo, 12 de outubro de 2008

Bom dia, Cris

Há tempos eu não ouvia o canto da madrugada.
Não passavam das 4h30 e, quando descemos do carro, surgiu aquele canto em vários.
Eu olhava as árvores à procura de uma forma. Mas o canto daquele bando de sabiás vinha sem assinatura única. Olhei para o céu, em plena brincadeira de azul-escuro-que-vira-claro, à espera de ser invadido pelo amarelo do sol.
Então me pareceu que o canto vinha mesmo era do céu.
Ou tudo aquilo era vontade de um sonoro "Bom Dia, Cris".

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O menino que tinha mãe suspiro e pai cambalhota

Gustavo caiu na tigela de suspiros. Não, nada disso. Quem caiu foi Virgínia, da Marina, e na xícara de leite.
Gustavo estava cavocando a tigela de suspiro em busca da mãe. Ele tinha uma mãe-suspiro.
Muito desligada e doce – como qualquer mãe-suspiro – ela sempre deixava Gustavo preocupado. Depois do lanche, onde teria ela se metido?
Só mesmo o pai-cambalhota para encontrá-la. Sim, ele também era filho de um pai cambalhota. Alegre, dando voltas sem parar, o pai cambalhota levava a vida aos giros, no maior pique.
Atrapalhado em busca da esposa, o pai cambalhota tropeçou e rolou tigela de suspiro abaixo.
Gustavo, que era preocupado, mas não mal-humorado, caiu na gargalhada, daquelas que só um pai cambalhota pode provocar.
A mãe-suspiro, sempre distraída, foi pega de surpresa. Mal se deu conta de que estava perdida, pegou o marido rodando sem parar e o filho em lágrimas de tanto rir. Achou a cena tão estranha quanto engraçada e se pôs a girar e rir, como uma família unida adora fazer.
Só que o pai cambalhota não conseguiu segurar as próprias voltas e caiu por cima da mãe suspiro que virou quase uma paçoca. Mas não era esmagamento. Era abraço.

(para a Luciene e Gustavo, o filho poeta)