quarta-feira, 16 de janeiro de 2008

Emília filósofa

A vida é um pisca-pisca. A gente nasce, isto é, começa a piscar. Quem pára de piscar, chegou ao fim, morreu. Piscar é abrir e fechar os olhos - viver é isso. É um dorme-e-acorda, dorme-e-acorda, até que dorme e não acorda mais. É, portanto, um pisca-pisca.
(...)
A vida das gentes deste mundo, senhor sabugo, é isso. Um rosário de piscadas. Cada pisco é um dia. Pisca e mama; pisca e anda; pisca e brinca; pisca e estuda; pisca e ama; pisca e cria filhos; pisca e gemes os reumatismos; por fim pisca pela última vez e morre.
- E depois que morre? - perguntou Visconde.
- Depois que morre vira hipótese. É ou não é?
O Visconde teve de concordar que era.

(trecho de Memórias de Emília, Monteiro Lobato)

quinta-feira, 10 de janeiro de 2008

Entre o gosto e o jornalismo

Cultura é gosto.
Leio sobre o assunto desde a adolescência, quando ganhei uma assinatura da revista Bizz. Vivi em música a infância inteira e passei a gostar demais de ler sobre artistas, sobre o mundo, sobre como fazem músicas, sobre como se conhecem, convivem, criam.
Quando comecei a trabalhar como jornalista, ainda na faculdade, este meu lado 'fã' foi começando a ser colocado à prova. Mas eu nem me dava conta disso. Tinha aquele fantasma do ser ético, do não contaminhar meu olhar por causa de minhas preferências, da tal imparcialidade. Só que eu fui vivendo: ia simplesmente entrevistando o pessoal do Barão Vermelho, o Nasi do IRA! e unindo meu conhecimento de vida para fazer pequenas entrevistas. Comecei a notar que substituía ali o gosto por um beijo ou um autógrafo pelo prazer de uma boa entrevista.
Isto continuou quando comecei a produzir um programa somente sobre música brasileira, o Nossa Terra, Nossa Gente, na rádio Imprensa e depois no meu trabalho no Diário Popular. Era maravilhoso. Aprendi demais. E aí esta Cris fã e jornalista continuou aparecendo meio junto, meio em conflito, meio feliz, meio angustiada. Mas sempre foi um prazer. Porque sempre soube, digamos, me comportar. Ao contrário de questionamentos que fiz anos depois, o fato de eu conhecer música, ter ouvido este povo, ter lido sobre eles por prazer - e não por trabalho - me rendeu ótimas conversas, ótimos sorrisos, ótimas entrevistas. Foi assim com o cantor Zé Renato, o sambista Zé Keti, na única pergunta que consegui fazer na coletiva do Chico Buarque, em um bate-papo sobre música negra com João Marcello Bôscoli. É assim hoje num papo com Paulo Tatit, do Palavra Cantada, ou ao entender as referências do grupo mineiro Ponto de Partida com os cantores Meninos de Araçuaí.
Estas palavras foram provocadas em mim por causa de um presente que ganhei ontem. O livro Palavra Cruzada, do jornalista Júlio Maria, marido da minha agora amiga Daniela Tófoli. É sobre a arte da entrevistas sem muita teoria: são as entrevistas publicadas na coluna que ele tem no Jornal da Tarde desde 2004. Eu conheci o Júlio em um dos momentos mais gostosos desta Cris fã-jornalista: na gravação do Acústico dos Paralamas do Sucesso. Aquele dia era somente mais um encontro com esta banda que aprendi a gostar na adolescência e que admirei ainda mais em entrevistas, pela integridade de se manter banda, cuidado com os fãs, com a música, com a preocupação em oferecer bons momentos - e, claro, vivê-los também.
Adorei ver em Júlio que ele lida bem com isso, que ele não se preocupa em saber e ser na hora de entrevistar: é tudo uma coisa só. Preocupado mesmo ele está com a entrevista, em conquistar o entrevistado: o julgamento atrapalha, oras.
E muito, eu bem sei. Trabalhei muito tempo com celebridades que de nada tem a ver com talentos. Mas se este era o meu trabalho, eu fazia o melhor. Se eu podia evitar a conversa sobre o casamento desfeito e o possível ensaio nu em revista, eu engatava um papo gostoso com qualquer um. Sempre descobria algo que a pessoa gostava e aprofundava. Nunca fui maltratada, nunca precisei sair falando mal de artista. Não era eu quem estava em jogo, não eram meus sentimentos, nem minha opinião. Meu trabalho era mais importante.
Eu ando meio estafada de jornalistas. De se intitularem donos da verdade sem a menor preocupação com o quão clichê é esta arrogância. Estou cheia de certos, errados, fórmulas mundiais de como fazer a boa entrevista, a boa matéria, o bom título, a boa pauta. Júlio me confirma que quem é bom, é bom. Basta ser você. Vá atrás de respostas, do que você pensa sobre o assunto, das perguntas que há em você. Jornalista não é burocrático, não é um preenchedor de lacunas. Jornalista é a pessoa que ao invés de ler a opinião dos outros, larga tudo e vai viver experiências. Ou poderia ser isso.
Agora mesmo eu estava aflita para uma entrevista com a escritora Marina Colasanti. Pensei: "como vou falar de poesia, como vou concretizar em uma entrevista algo tão não palpável? Será que sou capaz de ter este papo?". E não é que a entrevista aconteceu com a mais simples das perguntas : "como é escrever poesia para crianças?" e emendei uma ainda mais óbvia "o que é poesia?". E quer saber como foi a entrevista? Ótima! Leve e profunda, como somente um encontro de poesia pode ser. E as entrevistas podem ser assim, bons encontros. Livres. Simples assim.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Pais ausentes, drogas mais do que presentes?

Sei que é começo de ano e a gente quer mais é conversar sobre assuntos leves. Mas é que assisti ao filme Meu Nome Não é Johnny, bem protagonizado por Selton Mello que interpreta um garoto de classe média do Rio, João Guilherme Estrella, um dos maiores traficantes de drogas do Rio de Janeiro nos anos 90. A história é verídica e o filme de Mauro Lima é baseado na biografia assinada por Guilherme Fiúza.
Falo do filme aqui não apenas porque vale como entretenimento. Mas pelas discussões morais, filosóficas – criminais até – que o filme expõe, já bem exploradas em Tropa de Elite e Cidade de Deus. Ele vai por um outro viés que é importante para todos, todos aqueles que acham que criar um filho é tarefa importante, dá trabalho e merece toda a atenção.
É neste aspecto que discordo de uma parte do texto do crítico de cinema da Folha, Ricardo Calil, que bem mencionou a interessante abordagem: “no lugar do costumeiro criminoso pobre, negro e de família desestruturada, o filme nos apresenta um traficante branco, de classe média, morador da zona sul carioca e filho de pais amorosos”. É este “pais amorosos” que questiono. Não li o livro e nem falei com Estrella, mas pelo que o filme apresenta, trata-se de pais ausentes, isto sim. E pais ausentes não podem ser disfarçados de “pais amorosos”. Sorrir e ser permissivo pode ser algo bem diferente de amor, ou um tipo de amor que os filhos não precisem.
Isto se dá claramente no desinteresse do pai de João pelas baladas pesadas que acontecem quase literalmente embaixo de seu nariz (no andar debaixo de sua casa, onde ele permite que o filho faça o que quiser). Também fica bem exposto quando a mãe ganha um colar caro do filho, sorri e, quando perguntada sobre a profissão de João ela diz apenas “não sei, algo no ramo de vendas”, engolindo toda a hipocrisia de uma mulher que simplesmente “deixou a vida do filho acontecer”, parte do discurso emocionante que ele faz no tribunal para assumir que, no fundo, fazia tudo para manter o vício.
Mas, como bem escreveu o psicanalista Contardo Calligaris em sua coluna dia 3 de janeiro no mesmo jornal, o filme permite uma esticada na discussão. Meu Nome Não É Johnny fala de uma relação entre pais e filho que vai além do clichê "pais permissivos" facilitam que a sua "criança" sem limites se meta em encrencas como o excesso de drogas.
Diante de pais que - cada um por seu motivo - meio que desistiram de continuar vivendo, apostam no filho uma liberdade de escolhas, de experiências, projetando nele uma vida que não podem mais ter. Ou que acreditam que não mais possam ter. E quem não vê limites para a felicidade dos filhos, pode não ver limites para tantas outras coisas...