sexta-feira, 27 de junho de 2008

Pisca e Plagia

A vida, amigo, é um pisca-pisca.
A gente nasce, começa a piscar.
Pisca e chora.
Pisca e é entubado pelo pediatra neonatal na maternidade tecnológica.
Pisca e mama, pela primeira vez.
Pisca e vê os olhos da mãe, sorrindo.
Pisca e ela sorri de novo, por causa da piscadela.
Pisca e engatinha. Pisca e anda. Pisca e fala.
Pisca e pede.
Pisca e assiste a.
Pisca e escolhe o cheiro, o gosto.
Pisca e abraça um amigo.
Pisca e brinca.
Pisca e lê.
E aí pisca, pisca, pisca e conhece o mundo. E não pára mais.

(Uma homenagem a Monteiro Lobato, provocada por Gabriel Perissé)

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Oito anos

Ir à escola sozinha foi um grande ganho. Cresci.
Subia um quarteirão, caminhava mais uns quatro até a faixa de pedestre. Apertava o botão, sempre com muita força. Aguardava o homenzinho verde, lá no alto. Concentrava-me. O tempo era curto. "Mesmo com o homenzinho verde, olhe para os lados antes", ela avisava. Homenzinho verde, olhar para os lados. Pronto. Não corria, andava depressa. O tempo podia acabar.
Descia a rua comprida, em poucos minutos estava no colégio.
A tarde passava. O farol me aguardava de novo e os quarteirões se repetiam contrários. Abria a porta e já a via na cozinha. Ela abria os braços, eu corria. Aquele cheiro de abraço, o encaixe perfeito. Estava em casa.

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Li não li

Sempre a dúvida, a angústia, a culpa.
Procuro a leitura por prazer, mas o questionamento afasta, empurra para o outro lado.
O tempo vai.
Na busca, partes começam a se desprender da memória.
Folheio as páginas como quem folheia lembranças: tem cheiro, cor desbotada, casa, abraço.
Não há sensação, palavra, sentido ou verso que dê conta do tempo. Do tempo dos livros, do número de páginas, da profundidade de emoções.
Não leio rápido. Sinto cada palavra. Sentir, leva tempo.
Mas continuo.
Remexo na infância, encontro Ana Maria, Monteiro, os contos clássicos, em várias contações. Respiro.
Remexo na adolescência, chego a Machado, arrepio de Eça.
Quem mandava em mim era a música, me embebedava de poesia. Suspiro.
Remexo as memórias e vejo que vivo de coincidências. Cruzo livros, leituras, indicações, amigos. Vejo.
Adquiro olhos de ver.
Caio em Manoel de Barros, tropeço sempre em Pessoa, suspiro com Cecília Meirelles.
Mas vivo mesmo é me encontrando com Clarice. O li não li perde a importância. Sinto, entendo.
Releio Clarice. E releio a mim. Às vezes não dou conta. Mas não vivo mais sem.

(após provocação de Nelson de Oliveira para poemizarmo-nos)

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Domingos

Há quem diga que o domingo causa preguiça. O acordar tarde, o almoçar sem pressa, mais tempo para ler o jornal, o encontro com os amigos no fim de tarde.
Eu gosto.
Me lembra o Fantástico, claro. Tem gosto de macarrão, cheiro e cobertor no sofá.
Adoro mesmo é o silêncio. Tem som de passarinho.

domingo, 15 de junho de 2008

Encontro com Kandinsky

Aconteceu no Centro Cultural São Paulo.
As cortinas abriram-se, o primeiro a aparecer foi o pintor.
Depois veio a tela branca. E as cores. As formas.
Kandinsky foi surgindo. Desta vez, em dança. E foram círculos, giraram em mim, no azul, no amarelo. Correram as curvas, saltaram o quadrado e os pontos.
A reta, determinada, correu meus olhos, como música.
Uniram-se todos. Havia crianças. Cada uma delas ainda mais envolvida do que eu.
Unimo-nos todos. E a Kandinsky.

(sobre o espetáculo Lúdico, da Cia Druw)

sexta-feira, 6 de junho de 2008

O rim e o drops

A aula de inglês do intercâmbio em Nova York focou em um tema bem específico: transplante de órgãos. Naquela classe com traseuntes do mundo inteiro, a conversa girou em torno de códigos de conduta, possibilidades, questões - literalmente - de vida e morte.
"Bizarro", pensou a garota, após se encapotar com casaco, gorro, luvas. Depois, a mochila e a câmera fotográfica no pescoço. Nova York é para ser fotografada, qualquer canto, qualquer pessoa.
O passeio de turista acabou e ela termina o exaustivo andar para lá e para cá com uma volta do confuso - mas finalmente decifrado por ela - metrô novaiorquino. Entou no vagão apenas quatro estações antes de seu destino, Penn Station. Uma antes, levantou-se do banco para já se colocar a postos, perto da porta. Olhou mais uma vez pela lista de estações - checar nunca é demais.
Uma quase tosse veio nela. Não segurou, quase tossiu, de fato. Um homem com a aparência indiana olhou atento. Perguntou a ela se estava passando mal. Ela não falava bem o inglês, mas entendia razoavelmente. Disse que não, emendou um "it´s just coff". Ele entendeu. Sacou do bolso um drops. "Pode ficar com a metade".
Foram segundos. Ela agradeceu a gentileza. E ele disse que era uma espécie de retribuição: ele havia recebido a maior gentileza do mundo. Era um transplantado. Ele ganhou um rim de alguém que nunca viu. Detalhou a ela sobre a cirurgia, o antes e depois. E como as pessoas o olhavam de um jeito diferente, principalmente quando ele contava sua história. E como ela, a menina, era gentil em ouvir tudo. E sorrir.
"Você tem um sorriso gentil", ele disse a ela.
O trem parou, ela desceu.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Vamos nos embriagar

Em uma só noite, grandes passeios.
Teve Fernando Pessoa, Cora Coralina, Bandeira.
Sentimento de Vinicius de Morais, Chico Buarque, Alice Ruiz.
Estranheza a Olavo Bilac. Complicações de Augusto.
Lembranças a José Paulo Paes.
Poeta advogado, químico, farmacêutico mineiro.
Erotismo e jornalismo, rimas e religião. Palavras soltas, amarrações poéticas, definições indefinidas.
Deleites em vaivém, palavras voaram como num poema de Cecília Meirelles.
Belas experimentações, adorei!

E, para inspirar:

Tudo acaba nisso é a única questão
Embriagar-se é preciso
Não importa que horas são
Não ser escravo do tempo,
Nas escadarias de um palácio,
Na beira de um barranco ou na solidão do quarto
Embriague-se, embriague-se
De noite ou ao meio dia
Embriague-se, embriague-se numa boa
De vinho,virtude ou poesia
Tudo acaba nisso, é a única questão
Embriagar-se é preciso não importa que horas são
Pra quem foge, pra quem geme,
Pra quem fala, pra quem canta,
pra não ter medo da maldade, pra acordar toda a cidade
Embriague-se, embriague-se
De noite ou ao meio dia
Embriague-se, embriague-se numa boa
De vinho,virtude ou poesia
Embriague-se...
Embriague-se!
Pra quem foge, pra quem geme,
Pra quem fala, pra quem canta,
pra não ter medo da maldade, pra acordar toda a cidade
Não ser escravo do tempo,
Nas escadarias de um palácio,
Na beira de um barranco ou na solidão do quarto
Embriague-se, embriague-se
De noite ou ao meio dia
Embriague-se, embriague-se numa boa
De vinho,virtude ou poesia

É uma livre adaptação do poema de Charles Baudelaire musicada pelo Barão Vermelho