quinta-feira, 22 de maio de 2008

Definições das crianças

Quem não tem uma para contar?
São ótimas para o nosso SPC - Sistema Pessoal de Convicções.

Adorei uma definição que uma criança deu para biblioteca. “Biblioteca é um lugar cheio de silêncio”.
Estas são do Dicionário de Humor Infantil, do Pedro Bloch:
- Relâmpago é um barulho rabiscando o céu.
- Palhaço é um homem todo pintado de piadas.
- Sono é saudade de dormir.
- Arco-íris é uma ponte de vento.
- Deserto é uma floresta sem árvores.
- Felicidade é uma palavra que tem música.
- Rede é uma porção de buracos amarrados com barbante.
- Vento é ar com muita pressa.
- Cobra é um bicho que só tem rabo.
- Avestruz é a girafa dos passarinhos.
- Calcanhar é o queixo do pé.
- Chope é o refrigerante de adulto.

E o meu amado livro Mania de Explicação, de Adriana Falcão , uma espécie de dicionário poético das coisas que não conseguimos definir para as crianças. Lindo. Não consigo ter preferidas, mas há algumas que adoro:
- Saudade é quando o momento tenta fugir da lembrança pra acontecer de novo e não consegue. - Amizade é quando você não faz questão de você e se empresta pros outros.
- Certeza é quando a idéia cansa de procurar e pára.
- Perdão é quando o Natal acontece em maio, por exemplo.

terça-feira, 20 de maio de 2008

Vamos sonhar, papai?

Quando eu era menor, e precisava ter sono na hora de dormir - sabe que, com criança, isso é mais terrível ainda, né? - eu deitava na cama, fechava os olhos e começava girar imagens na minha cabeça.
Eu girava mesmo. E uma entrava no meio da outra, mudava de forma, pegava emprestada a cor de outra, devolvia.
Tinha uns riscos, como quando a gente consegue fotografar o movimento da luz, sabe?
Lembrei disso por causa de uma brincadeira. De dois amigos meus, pai e filho.
Eles estavam brincando de sonhar.
Era mais ou menos assim:
- Pai, eu posso escolher meu sonho. É assim: primeiro, feche os olhos. Bem fechados. Depois, deite a cabeça. Aconchegue-se no travesseiro. Mas tem que ser bem gostoso, pai! Agora vai lá e procura, pai! Procura mais. Achou?
O pai ajuda:
- E se a gente lembrasse da praia? Da gente correndo para a água, sentindo ela fria entrar pelos nossos pés. E depois quando corremos na areia, ela gruda na gente por causa do molhado. Dá aquela coisa áspera, a gente quer tirar, mas é gostoso ter.
O menino abre os olhos.
- Pai! Corre comigo, vamos sonhar!

domingo, 18 de maio de 2008

O sabiá do meio

Pousou na grama e não reconheceu. Foi o que pensei quando o vi ali parado, entre um trânsito e outro. Ele acha que ali é o Parque do Ibirapuera. Pousou por engano.
Fitou os carros, os pedestres. Viu algo parecido diversas vezes. 
Mas ali não era o seu lugar. Calculara mal o trajeto?
O sabiá ali, laranja por baixo, olhos atentos ao movimento.
Eu parei de ouvir e olhei. Encontrei seu canto. O canto de todos os meus dias. O canto que me acompanhava no caminho da escola, no acordar da minha mãe. O canto que está à minha espera no trabalho. O canto que se mistura aos outros no parque. Mistura-se mas não vira um só. Cada um tem o seu. 
Quantos cantos e vôos nós interrompemos de tanto barulho?

sábado, 3 de maio de 2008

Minha primeira história

O pessoal que trabalha aqui vive falando de mágica. Dizem que, por mais que tenha formação acadêmica ou técnica, só com ela a educação acontece por completo. Eu, como sou uma escola, feita de tijolo, tinta, madeira, areia e cimento, fico um pouco confusa com assuntos não-concretos. Mas estou aprendendo. Aprender, aliás, é um verbo que ganhou outra cor por aqui. Essas pessoas que acreditam em mágica estão mudando minha concepção sobre vários assuntos. Elas dizem que, para construir, precisamos desconstruir primeiro. Que, para mudar, temos de refazer conceitos e desfazer certezas. E isso soa para mim muito natural. Como se eu sempre soubesse que é assim que se faz. Outro dia, naquelas conversas maravilhosas entre professor e criança, um aluno se deu conta de que professor é aquele que - de repente - aprende. Igualzinho falou há muitos anos o escritor João Guimarães Rosa, e que o meu querido amigo, o educador português José Pacheco, aquele que criou a Escola da Ponte, vive repetindo para a gente não esquecer nunca. O melhor é que esse aluno se deu conta disso sozinho. Aqui, os alunos são consultados até sobre o que e como querem estudar. Todo mundo aprende junto e sozinho. Cada um no seu tempo, no seu ritmo. Mas nem sempre foi assim. Houve um tempo em que tudo era cinza: as paredes, os uniformes e o humor de professores e alunos.Em educação, quando pensamos que está tudo feito, há muito o que fazerAté que um dia, há nove anos, passei a receber a visita de uma pedagoga engraçada, que gesticulava muito. Quando Ana Elisa Siqueira passou no concurso e assumiu a direção da escola, percebi nela um brilho diferente. Era uma mulher muito esperta e logo descobriu o que estava embaixo do cinza. Viu que os pais das crianças reclamavam das constantes faltas dos professores e da indisciplina na sala de aula. Estava na hora de partir para as soluções. Começaram as rodas de conversa. Alguns não entendiam o que tanto a Ana queria mudar. Mas essa Ana era cheia de querer e foi, aos poucos, seduzindo a todos. Primeiro, tirou as grades que reduziam meu enorme pátio e cercavam as crianças. Depois, tratou de pintar de laranja minhas portas. Mais algum tempo e as paredes também estavam coloridas. Era a tal mágica começando a acontecer.O que mais ajudou a Ana foi que, em trabalhos anteriores com pedagogia, ela conheceu bem a comunidade que vivia por aqui. Ela sacou, por exemplo, como era bom ter crianças, filhas de pais que fazem doutorado na Universidade de São Paulo, aqui ao lado, misturadas a crianças com pais analfabetos. A diversidade propiciava uma palavra que adoro ouvir: democracia. Sob o comando da Ana, alguns funcionários, pais, especialistas e parceiros das mais variadas áreas foram se envolvendo com os meus muros, sugerindo idéias e projetos. Um dia marcante foi quando ouvi o som do primeiro berimbau. Era música no meu coração. Se escola tem coração? Claro, eu tenho centenas deles. Tratava-se do projeto de cultura brasileira. Com circo, teatro, capoeira e danças brasileiras e muitas crianças. Alguns pais se animaram tanto que não saíam mais daqui. Até nos recreios, eles vieram ajudar. Foi então que a direção da escola decidiu contratar uma consultoria pedagógica, da renomada psicóloga Rosely Sayão. Numa das reuniões com os especialistas, ela exibiu um vídeo sobre a portuguesa Escola da Ponte. Quando os pais ouviram as palavras 'autonomia' e 'solidariedade', tiveram a grande certeza: 'Essa é a escola que queremos para os nossos filhos'.Fiquei ansiosa. Afinal, como seria? Qual era a fórmula do José Pacheco? Poderíamos repetir aqui? Um pai muito corajoso, Gilberto Frachetta, venceu as dúvidas, colocou debaixo do braço um projeto redigido por psicólogos, educadores, mais o consenso dos outros pais e, no final de 2003, foi bater à porta da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. A tal secretária não teve como recusar. Janeiro de 2004 chegou e a Ana veio com outra idéia maluca. As paredes das salas deveriam ser derrubadas. Isso mesmo. Quatro salas se tornaram uma! Duas lousas, uma de cada lado, crianças reunidas em grupos de cinco e três educadores por sala. Não há mais aulas únicas, preparadas para todos os alunos. A professora Cleide Portis ficou assustada. Nova na casa, imagine, ela entrou bem no meio da revolução. Outro dia, contou o que sentiu na época: 'Dos 20 anos que tenho de escola pública, a docência era algo solitário, eram os meus alunos, meu espaço, meu pensar. Aprendi a compartilhar. Dividimos as idéias e o material e agora as crianças aprendem juntas, com os colegas, no seu ritmo'. Notei que mudar de rotina é muito difícil para o adulto. Eles têm receio de experimentar e não dar certo. O que adianta derrubar as minhas paredes se não derrubarem as paredes deles mesmos? Mas, as crianças, ah, elas tiram de letra. Aqui, como na Ponte, seguem um roteiro de estudo sugerido pelos educadores e decidido por elas. Não há desordem ou espaço para indisciplina: elas têm liberdade para andar pela sala, mas, para chamar o professor, cada uma espera sua vez. No salão maior, por exemplo, estão as crianças correspondentes à primeira e segunda séries do ensino fundamental. Misturam-se as que já sabem ler e as que ainda não aprenderam. Para Amanda, que está na segunda série e já lê muito bem, não há o menor problema. 'Ficamos juntos para um ensinar ao outro o que sabe..' Outro dia, uma mãe contou que seu filho deixou de ser tímido, agora conversa mais em casa. Com a liberdade, as crianças ganham conhecimento. Com conhecimento, adquirem autonomia. Com autonomia, exercem a solidariedade. Hoje olho para mim e parece que todo mundo anda sorrindo. Ainda noto olhares de dúvida. Houve professor que preferiu sair e pai que optou por uma outra escola. Eu acho ótimo. Porque o importante é ter a chance de fazer escolhas, coisa rara na rede de ensino público do Brasil. Esqueci de contar que nem toda a escola entrou no novo projeto pedagógico de uma vez. Não havia como, era muita novidade e pouca experiência. Mas, agora já temos 10, 20, 30, 50, 60 e 70 anos no projeto. Foi uma forma de, em 2006, colocarmos todas as crianças falando a mesma língua.Dos tijolos derrubados, o pessoal daqui construiu um forno. Daqueles para fazer pão e pizza em dias de festa. O amigo Pacheco anda apreensivo. Disse que caminhamos em um ano o que a Ponte andou em 30. Outro dia, poetizou: 'É preciso cuidado, pois o importante não é velocidade, mas direção'. Por isso que, como ele diz, em educação, quando pensamos que está tudo feito, há muito o que fazer. É essa a vida que corre entre as minhas paredes: muitos caminhos a serem percorridos, muita coisa para consertar. Mas, se para a pequena Amanda o melhor lugar do mundo é aqui e agora, é porque já temos uma direção.

Publicado na Revista Crescer, em outubro de 2005Uma escola diferente, municipal de São Paulo, inspirada na Escola da Ponte, sem séries, salas de aula compartilhadas com crianças de várias idades

Duas noites alucinantes

Junto ao folhear da revista semanal, o som da campainha. Pelo horário levanto assustada, ninguém toca a esta hora. Ligo o canal de TV que nada transmite e vejo na porta as costas de alguém. Mais três vezes. Quando sai, resolvo ir à janela e descubro então o conhecido. O carro fora roubado.
Pedi socorro afetivo, desci e confirmei a notícia. Manhã seguinte, demora esperada para convencer a segurança que não nos dá segurança alguma de que o delito ocorreu, o culpado foi o outro. Problema da corretora de seguros, espera de todos.
Dia seguinte, novo sobressalto. O carro foi encontrado, senhora. A voz da policial me assustou mesmo com boa notícia. Boa? Segui para nova delegacia, suspense. Saímos atrás da viatura que pára. Policiais pedem a minha companhia para entrar em um estacionamento. O que é este lugar? Local de desmanche? Estacionamento da polícia? Não, senhora. Aqui é um estacionamento particular: seu carro foi meio para roubar outros três. Olha ele ali abandonado. Pode ver.
Posso ver? Mas posso mexer em tudo se tudo foi mexido? Claro. Mexo, então. Tudo revirado, mas tudo lá. E com bônus. Embalagens de equipamentos de sons. Outro crime. Mexo, ligo, sento. Posso ir? Não. Esperamos o delegado decidir. Mexo, sento. Aquilo ainda é meu? Largo aqui?
Não pode mexer mais, senhora. A perícia vem fotografar o veículo, ele foi usado num crime. Sinto-me longe do CSI americano e bem perto do caso Isabella em que todos entram e mexem no local após o crime e, depois, a polícia. Quando vem a perícia? Não sei.
Enquanto isso, papo de tiros, de onde estão ladrões, de qual é o PCC. Frio aumenta. Mal-estar. Sobressalto mais fome mais descaso. Sou a vítima e a mais castigada. Como se não fosse um serviço prestado, mas um favor pedido. Quero ir para casa. Não posso.
Perícia chega seis horas depois. Consegui dormir um pouco. Posso mexer de novo no carro, vou para a delegacia. Mais duas horas à espera. À espera da conversa, à espera da troca de plantão, à espera do sistema ligar, à espera do bom humor, das piadinhas sem graça, à espera da falta de respeito a mim e aos policiais militares que passaram a noite naquela situação e que se solidarizam comigo.
Mas nada importa. Passo mal. Não agüento. Eles se sensibilizam e fazem o trabalho que foi incumbido a eles, no momento do emprego. Não entende os detalhes, confunde-se. Grampeia, alisa o papel, julga. Acredita ter feito um grande trabalho e espera agradecimento. Devolvo. É hora de trabalhar.